Muito além do barroco: a história da arte mineira por artistas negros
- Redação do Matraca
- 14 de out. de 2020
- 8 min de leitura
Texto: Eduarda Xavier, Maria Paula Araújo e Keli Cristina do Nascimento
Edição: Ariane Lemos
Ao longo dos séculos, o processo de sequestro de africanos do continente mãe não apenas tirou a liberdade física, mas também aprisionou a um constante apagamento cultural dos povos trazidos para o Brasil. Entender que a colonização influencia até hoje nas perspectivas do que é belo, bom, profundo e raso se relaciona diretamente a como uma sociedade enxerga suas produções artísticas. Mais do que isso, sobre quem é ou não “artista”.
Se atualmente a maior parte das obras de arte africanas não se encontram no continente Africano, é importante destacar além da apropriação cometido por nações europeias, a falta de referencial para os artistas negros do continente e das diásporas. Sobre o apagamento cultural e invisibilização dos saberes, o conceito de “epistemicídio” é debatido entre intelectuais e ativistas negros no mundo inteiro. No Brasil, a filósofa Sueli Carneiro é identificada como referência, sua tese de doutorado publicada em 2005 aborda a temática e destaca que o epistemicídio nada mais é do que a negação dos negros enquanto sujeitos produtores de conhecimento.
Falar sobre epistemicídio é também falar sobre a imposição de uma cultura dominante. Em sua pesquisa, Sueli Carneiro destaca o “embranquecimento cultural” como a imposição da lógica ocidental dentro das expressões culturais produzidas por pessoas pretas. Ou seja, além das dificuldades que envolvem ser um corpo preto na arte, há também uma delimitação de até onde esse artista pode ir e quais temas deve ou não abordar. Isso reforça o esquecimento de saberes tradicionais e as vivências de um povo para a construção de uma história única. Narrativa essa que passa a ser contada pela ideologia dominante: branca, ocidental e burguesa.
Cultura do apagamento
Você consegue citar três artistas visuais mineiros? Dentre eles, quantos são negros? Entender o epistemícidio na arte mineira é fazer esse exercício constantemente para que artes e artistas não brancos não sejam apagados da história. E para você que ainda não conseguiu listar um artista negro de destaque, separamos alguns exemplos na contra mão do epistemicídio.
Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho), filho de pai português e mãe escrava foi, e ainda é, um exemplo de apagamento histórico, seja pelo não reconhecimento de suas obras ou pela interpretação de seu trabalho como sendo de um artista banco. Antônio Francisco Lisboa foi um artista preto e ganhou uma nomeação capacitista devido a uma deficiência física. Muitos de seus trabalhos foram feitos para confraria e “irmandades” associadas a questões religiosas.
Letícia Reis, mulher preta, fotógrafa, graduanda em História (UFMG), participante do Docência Negra, grupo que se propõe a apresentar narrativas plurais e fotografias na trajetória de mulheres negras na UFMG e integrante do Grupo de Estudos de África Pré-Colonial da UFMG (GEAP), traz para o debate a vivência enquanto artista e historiadora.

Letícia relata como o epistemicídio interfere tanto em sua trajetória artística quanto docente “Eu sinto no curso de História, que estudamos a cultura negra, mas quem constrói o conhecimento, no geral, são pessoas brancas. E isso é muito complexo, porque muitas questões não são aprofundadas. Existe uma falta de material didático de Minas Gerais, no geral, as coisas não são pensadas geograficamente, não consideram particularidades regionais, existe um apagamento didático. E dentro disso, existe o apagamento dos intelectuais e artistas negros que, quando são chamados, são sempre postos de lado ou só uma contribuição é pequena, além de não haver o aprofundamento dentro do território geográfico”, analisa.
Sobre o meio artístico, a historiadora cita um exemplo para ilustrar seu pensamento ocorrido recentemente, durante a pandemia de Covid-19. Com o intuito de arrecadar recursos para doação, um conjunto de fotógrafos lançaram a iniciativa “Fotografias por Minas”. Segundo Letícia, o grupo tinha mais 300 fotografias e menos de 1/4 da totalidade eram pessoas negras. A percepção desse fator enquanto algo problemático na execução do projeto só se deu após o boom das movimentações antirracistas que ocorreram nas mídias sociais, em junho e julho deste ano. Leticia destaca também, que isso foi usado mais por uma questão mercadológica do que de inclusão. “Os e as organizadoras abriram uma nova chamada para fotógrafos e fotógrafas negras e LGBTQ+, mas isso já estava no final da execução do projeto”, ressalta. Letícia completa sua reflexão afirmando que “existe a perspectiva de achar que artistas negros só tem que ser chamados para falar sobre racismo. E nem sempre expor ou falar sobre arte negra é colocada da melhor forma, muitas vezes é erotizado ou descredibilizado”.
Arte é expressão, manifestação, cultura, política e história. As expressões artísticas contam a história de um povo/nação. Mas se pensarmos em nosso contexto nacional, a história contada através da arte engloba com veemência a produções artísticas de negros e negras?
Segundo Maria Cristina Melo, mestre em História da África, Diáspora e Povos Indígenas, o olhar sobre a produção artística tende a supervalorizar artistas brancos. Entendendo como universal a produção artística que os tem como protagonistas. Maria Cristina destaca que a séculos as características relacionadas ao negro trazem uma noção de inferioridade e incapacidade. Se povos não brancos eram – e infelizmente ainda hoje são, por alguns – considerados selvagens, a esses jamais seriam atribuídos os valores para a produção do belo, ou seja, da arte.

A estudiosa relata que o brasileiro tem aversão à sua própria cultura e ignora as expressões e formas culturais construídas por seu povo, que pode ser considerado enquanto uma “cultura” do apagamento, levando em conta o período em que isso ocorre.
De Minas para o mundo
Recentemente circulou na mídia o caso do artista Joaquim Pinto de Oliveira, mais conhecido como Tebas, que finalmente, após séculos de esquecimento, foi nomeado o arquiteto responsável pela restauração da Catedral da Sé. Tebas enquanto um homem negro na São Paulo escravocrata, não reflete um caso isolado, mas uma parcela gigantesca de artistas negros apagados ou esquecidos pelo tempo e pela perspectiva colonial da arte. Pensando nisso, a reportagem do Matraca Blog destaca a trajetória da pintora Maria Auxiliadora da Silva, com o objetivo de reafirmar a memória e o poder de uma artista mineira que ganhou o mundo com suas obras, marcadas pela tradição, identidade e resistência.
Maria Auxiliadora da Silva nasceu em Campo Belo (MG) no ano de 1938 e, como boa parte dos artistas negros, apreendeu seu ofício nas artes plásticas de forma autodidata. Filha de pai trabalhador braçal em estradas de ferro e mãe bordadeira, mudou-se para a capital paulista com a família e, por volta do ano de 1954, começou a trabalhar como doméstica e passadora de roupa. Em 1967, começou a produzir suas obras em guache e lápis de cor e, após passar por uma cirurgia, decidiu permanecer em casa e se dedicar à pintura.

As obras de Maria Auxiliadora contam e retomam a história dos lugares em que a artista viveu, a partir da sutileza afetiva dos detalhes e das cores vibrantes. Majoritariamente em uma abordagem coletiva que engloba diversos personagens para a construção da paisagem poética, suas pinturas retratam a vida no campo, as festividades, o candomblé e suas deidades, o cotidiano do trabalho.
Apesar da morte prematura no ano de 1977, aos 39 anos, sendo dez deles dedicados a produções artísticas, a intensidade de suas obras fez Maria Auxiliadora conquistar cenários internacionais da arte. Seus trabalhos foram expostos na Europa e nos Estados Unidos, rendendo inclusive uma monografia publicada pela editora italiana Giulio Bolaffi. Além de inúmeras exposições brasileiras que seguem acontecendo mesmo após sua morte.
Em 2018, por exemplo, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) reuniu 82 obras da artista, abordando sua vida e seu cotidiano. Para os interessados em saber um pouco mais tanto da arte quanto da artista que assim como tantas outras Marias negras na arte segue inspirando gerações, o compilado dessa exposição se transformou em um catálogo “Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência”, que traz também trabalhos inéditos, um pouco do processo criativo da artista, segundo a sinopse 12 ensaios inéditos, três republicações de textos históricos e uma nota biográfica.

Novas perspectivas
Pedro Neves ou Mulungu, como seu user no Instagram destaca, é uma das novas caras da nova perspectiva para os artistas pretos. O artista visual de 23 anos, nasceu no Maranhão, mas é em solo mineiro que ele exercita a sua arte há mais de 10 anos. Seu pai veio de Imperatriz do Maranhão para a região metropolitana de Belo Horizonte, e consequentemente, Pedro e sua família vieram. O que acarretou que mudasse de casa mais de 12 vezes, atualmente é morador do Morro das Pedras, na capital mineira.
Sua trajetória de vida entrelaça-se com sua trajetória artística, o fato de ter mudado de casas diversas vezes, por exemplo, e como o próprio destaca, influência em sua maneira de produzir arte. “E nunca criei raiz, então, tem essa coisa de não ter raiz em lugar nenhum. Eu tenho certa carência, isso influencia meu trabalho: porque eu não vivencio aquilo, para as pessoas é algo normal, mas para mim é tipo uma imagem, algo pictórico. Uma cena bonita porque eu não estou dentro. E como se eu fosse um fotógrafo, que eu expresso através da minha pintura. E essa relação que eu estou de fora, mas consigo ver muita beleza, mas tenho varia barreiras, então vejo essa beleza e expresso ela no meu trabalho”, descreve.

Além disso, Mulungu também destaca o racismo presente no conceito de “arte popular” e como essa consideração sub valoriza artistas pretos e pretas. “A arte popular, não é muito vista como arte, ela é sempre colocada no lugar de artefato. Você não vai ver leituras conceituais de artistas popular, do Jequitinhonha, Mariana, Diamantina. Porque é sempre artefato, e isso é uma invisibilização muito grande e essa ‘leitura’ passa por raça, classe, econômica, formação, questão geográfica, todas as questões sociais passam por isso. Então não vai ter um reconhecimento igual Mário de Andrade, porque são artistas populares. Quando você é preto sem academia, sua arte passa a ser artefato”, defende.
Apesar de Mulungu possibilitar outras interpretações e novos horizontes, o artista ainda ratifica a presença do racismo no meio artístico e o apagamento que artistas racializados sofrem. “O Brasil tem que ser pensando de maneira diferente, a gente tem um mercado bem diferenciado, porque tem a presença muito forte do que é arte popular, e na maioria das vezes são artistas negros neste espaço. E dentre esses artistas populares, eu faço parte, teoricamente, tanto porque não sou acadêmico, tanto porque meu trabalho é do povo. Mas por outro lado eu distancio, porque eu estou em galerias e em coleção de compradores do Brasil”, fala sobre especificidades do mercado brasileiro.
Para ele, a criação de redes de apoio entre pessoas não-brancas é o caminho para romper com a lógica de invisibilidade e apagamento das produções artísticas realizadas por pessoas negras. “Meu sonho é criar uma galeria pra pessoas racializadas, num lugar que dá grana. Aí a gente vai contratando outras pessoas, e eu ponho uma pessoa que vende muito, e chama outra. E as coisas vão acontecendo em rede. A gente tem que estar atento com o que a gente fala, com quem, como”, ressalta. Para Mulungu as perspectivas para artistas pretos no Brasil devem ir além dos estereótipos racistas que envolvem a produção artística, demonstrando uma arte preta próspera, coletiva e ancestral, capaz de contar e lembrar suas próprias histórias.

“Pedir desculpa para nossa ancestralidade e se aproximar, dá uma força muito grande para gente. A gente tem que pedir força. O que dá força para sustentar é a ancestralidade, quando a gente com os guias em dia com a gente, a gente tem força para estar nos lugares.
E tudo em coletivo e para quem vai vir depois. Meu conceito de sucesso é esse, ajudar as pessoas que são iguais a gente”, projeta.
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