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No alicerce da alimentação e da história de Minas

Nesta reportagem especial o Matraca Blog retorna ao passado para explicar o porquê o queijo confundindo-se com a própria memória do estado e hoje é considerado um dos símbolos da mineiridade

Texto: Alexandre Bernardes, João Marcos Fiuza e Roberta Carvalho

Edição: Ariane Lemos

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“Vai um queijinho aí?” (Foto: Shutter / Banco de Imagens)

Desde 2008, o Queijo Minas Artesanal é considerado Patrimônio Imaterial Brasileiro tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). São sete as regiões do estado que possuem o certificado de reconhecimento: Araxá, Serra do Salitre, Serro, Campo das Vertentes, São Roque de Minas, Cerrado e o Triângulo Mineiro. “O principal e mais icônico alimento que Minas Gerais tem hoje é o queijo”, afirma o jornalista gastronômico e especialista em queijos, Eduardo Girão. Idealizador do mapa do queijo especial de Minas Gerais, Girão aponta três razões que garantem a importância simbólica do alimento: a geográfica, por estar presente em todos os cantos do estado, a histórica, por estar em Minas desde que o estado é chamado por esse nome, há 300 anos; e a diversidade, marcada pelas particularidades técnicas empregadas em cada região, o que torna os queijos aqui produzidos especiais.

Por toda essa riqueza, o Matraca Blog te leva a uma viagem gastronômica para conhecer melhor a história dessa iguaria indispensável à mesa dos mineiros e que vem conquistando admiradores no Brasil e no mundo. Vamos percorrer o surgimento do queijo em terras brasileiras e como ele se tornou produto mais representativo da culinária mineira.

No estado mineiro, foram desenvolvidas técnicas e receitas muito particulares e esse saber fazer forma a parte cultural à medida que tem pessoas que materializam isso. Segundo Eduardo Girão, Minas é um lugar ímpar no continente americano quando o assunto é a produção de queijo. Isso vem do resultado do cruzamento de pelo menos cinco culturas diferentes a portuguesa, a holandesa, a dinamarquesa, a italiana e a francesa. Povos totalmente distintos que passaram por Minas e forjaram uma produção própria do queijo.

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Jornalista gastronômico Eduardo Girão elaborou um mapa com as principais regiões queijeiras de Minas (Foto: Alexandre Guzanshe)

De coadjuvante a protagonista

Existem passagens da produção de queijos no Brasil registradas desde a chegada das vacas, cabras, búfalas e ovelhas, em nosso território. No entanto, a construção de um histórico preciso é bastante dificultada pela pouca quantidade de referências destas épocas. Não existem relatos de que os índios brasileiros produzissem queijos. Talvez a produção fosse ume desafio quase impossível a eles já que não praticavam qualquer tipo de pecuária leiteira. Também não havia vacas, cabras e ovelhas nativas no território. Quando o Brasil foi “descoberto”, as técnicas de produção e de cura de queijos já eram praticadas há muitos séculos em outras regiões do mundo.

A economia das capitanias do Brasil Colônia, incluindo a de Minas, sustentou-se em atividades extrativistas e monocultores. Por isso, no início, a pecuária se desenhou como coadjuvante nos ciclos econômicos da cana-de-açúcar e da mineração no nosso país. Na medida em que as explorações aconteciam juntamente a elas foram instaladas a criação de cabras, ovelhas e vacas. As primeiras vacas foram trazidas por Martim Afonso de Souza e sua esposa Ana Pimentel de Souza, em 1534.

Mesmo com as ordenhas, a produção de leite era voltada para a subsistência. Não era interessante para a administração colonial o desenvolvimento da pecuária. Com isto, a criação destes animais foi deslocada para o interior. Vacas e bois eram vistos pelos Senhores de Engenho como ameaça ao monocultivo da cana-de-açúcar, pois demandavam espaço e invadiam os canaviais para se alimentar.

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"Boi Barrosão" - Ilustração de Leopoldo Costa

A fabricação de queijos aconteceu de forma mais acentuada durante o ciclo da mineração, ambientado na região dos atuais estados de Goiás, Mato Grosso, Bahia e, especialmente, Minas Gerais, a partir do final do século XVII. Durante a exploração do ouro e das pedras preciosas, muitos centros urbanos surgiram, dando origem a cidades como Diamantina, Serro, Ouro Preto, Mariana, Sabará, São João del-Rei e Tiradentes. Estes centros urbanos da capitania de Minas receberam muitos imigrantes, vindos da Europa e migrantes vindos de outras regiões do Brasil. Para atender a demanda alimentar das crescentes populações, produzir alimentos próximos as localidades foi fundamental.

Foi então que junto com as dificuldades de rapidez no escoamento do leite cru das roças para as cidades, especialmente devido ao relevo montanhoso de Minas Gerais, a produção de queijos virasse estratégia de conservação das propriedades nutritivas do leite e distribuição para o mercado consumidor. Com a decadência do ciclo da mineração, a pecuária leiteira passou a ser uma das maiores fontes de geração e riqueza para as regiões que ambientaram o extrativismo mineral. A produção destes queijos foi disseminada por diversas regiões, acompanhando o tropeirismo.

Tradições que persistem

Os queijos que surgiram a partir do ciclo da mineração são basicamente feitos da mesma forma até hoje. São produzidos com o leite cru de vaca, utilizando coagulante e o “pingo”, que é um soro-fermento com microrganismos naturais e típicos da propriedade. O uso de prateleiras de madeira para a cura dos queijos também é mantido, como nos primórdios. Esses são os fatores de produção que caracterizam o Queijo Minas Artesanal, segundo o IPHAN.

De acordo com Girão, “esse saber fazer é o que torna o queijo cultural e que motiva toda essa importância, (o queijo) compõe a tradição de Minas”. A cura desses queijos era realizada nas roças, com a finalidade de torná-los mais estáveis para que pudessem ser transportados em balaios e no lombo de animais, sem serem danificados durante o trajeto. Por isso comer um queijo fresco e branco era privilégio de quem morava na roça. Os queijos comercializados nas vendas das cidades eram mais amarelos e firmes e, levando em consideração o tempo de cura e o tempo gasto para o transporte, provavelmente tinham sabor e aroma distintos, devido à proliferação dos microrganismos.

Dado tal privilégio, o especialista gastronômico conta que, apesar dos diversos alimentos que são característicos do estado, o queijo é aquele que traz mais representatividade. O mineiro se identifica com o queijo e é conhecido por esse aspecto por onde vai, assim como carrega a tradição de servir e presentear com queijo, fator que colabora para a manutenção desse panorama, que até hoje é muito presente na cultura da região e contribui para a permanência desse produto tão especial.

Produção artesanal

Existem queijos com aspectos diferentes, como a presença de fungos filamentosos e com a casca “molenga” (queijo Casquinha da Canastra). Segundo o professor de Zootecnia a Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Cleube Andrade Boari em reportagem para o Sertão Brás, esses costumavam ser rejeitados pelos tropeiros que faziam o comércio destes produtos. A expressão “queijo doente” ou “queijo com piolho” era utilizada para se referir a eles.

Ainda de acordo com Boari, o Queijo Minas Artesanal recém-produzido apresenta sabor basicamente salgado e ácido. O sabor ácido decorre da fermentação da lactose por bactérias láticas, com consequente produção de ácido lático. Alguns dias após, é comum que este sabor ácido seja substituído por um sabor adocicado, devido a atividade de bactérias propiônicas. A maturação de queijos artesanais em Minas perdeu parte da importância, enquanto técnica de conservação, quando as trilhas e estradas de terra deram lugar a rodovias e quando as embalagens e o frio artificial surgiram. Os microrganismos “artistas” dos queijos perderam o tempo para completar sua obra.

As atuais experiências com a maturação, realizadas nas roças e nas queijarias artesanais, são esforços dos produtores contemporâneos para resgatar a reprodução de sabor e textura, e, até mesmo, para entender o que seus queijos poderiam ser. Esse fator é essencial para contribuir com a permanência das tradições do queijo frente as tensões que são colocadas pela parte industrial cada vez mais crescente em Minas Gerais. Esse embate silencioso se dá pela necessidade de os grandes produtores comprarem o leite dos pequenos que, quando optam pela fabricação própria do seu queijo, deixam de ser fornecedores e passam a concorrer de maneira mais sútil com sua produção própria.

O dilema ainda se estende na questão da diferenciação desses queijos. O produzido nas indústrias é originário de um leite pasteurizado, que o processo no qual o leite é aquecido para eliminar as bactérias, boas ou ruins, para a produção do queijo, de acordo com o previsto na legislação. Já a manufatura artesanal utiliza o leite cru que contém as bactérias essenciais para o processo de fermentação e colaboram fortemente para a ascensão sensorial no sabor do produto.

Por utilizar do leite cru, o queijo artesanal vem enfrentando grandes embates desde 1952, quando, na Era Vargas, o então ex-presidente assina uma lei de regulamentação que exige que exige 60 dias de maturação para os queijos feitos de leite cru. Essa lei foi alterada no último ano pelo decreto nº 13.860, de 18 de julho 2019, que finalmente possibilitou a comercialização do queijo artesanal.

Ainda tratando sobre a disseminação das tradições do queijo mineiro, uma loja em Lagoa da Prata, região centro-oeste de Minas, é dedicada especificamente aos queijos Minas Artesanal da Serra da Canastra. Segundo Fernanda Ferreira, uma das proprietárias da Mimos de Queijo, “a ideia de vender os produtos foi que um dos integrantes do nosso grupo de amigos foi morar na região da Serra, próximo aos produtores” que eles conheceram em uma viagem à região. “E devido a vários pedidos de amigos e conhecidos começamos aos poucos a levar para Lagoa da Prata os produtos produzidos na canastra como algumas pessoas não conseguem ir, a gente traz esses produtos até a mesa dessas pessoas”, explica.

Para Eduardo Girão a importância dessa valorização é um resgate da demanda pelos sabores. “Vivemos o momento da maturação pela qualidade e, não apenas, da maturação pela conservação”, comemora. Os produtores de queijo artesanal vivem uma nova fase histórica, basicamente iniciada a partir do ano de 2002 e fortalecida a partir de 2012, no movimento denominado #salveoqueijoartesanal. Um dos trabalhos realizados por Girão foi parte importante desse movimento. Com o projeto “Só Queijo Cura”, ele alavancou um consumo de queijos e criou um kit com três queijos artesanais e outros ingredientes harmonizados que são enviados para um público que é maior fora de Minas, segundo o especialista.

As riquezas de Minas estão em cada canto. Na sua entrevista para o Matraca Blog, Girão também conta sua última expedição e é possível sentir a emoção de presenciar e participar de uma cultura tão importante e que, por vezes, não tem a visibilidade necessária e enfrenta diariamente grande problemáticas para se manter ativa, como a falta de fiscalização ou a má remuneração dos produtores. Essa sensibilidade é colocada em pauta pelo jornalista gastronômico que, mesmo tendo se especializado nesse produto tão especial, ainda carrega consigo as técnicas para selecionar e apurar toda história presente em cada fatia das centenas de queijos experimentados por ele.

O jornalista gastronômico ainda ressalta que “queijo bom depende da hora” e que cada momento merece um queijinho especial para acompanhar. E você, depois de se alimentar de tanta história, vai escolher que queijinho para saborear agora?

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Eduardo Girão levantando um queijo e uma mesa cheia de suas especialidades posta a sua frente. (Foto: Alexandre Guzanshe)

Abaixo você pode conferir na íntegra a entrevista que Eduardo concedeu ao Matraca por áudio.

Matraca Indica

Para saber mais a respeito da cultura do queijo, o documentário político e poético do diretor divinopolitano Helvécio Ratton “O Mineiro e o Queijo” é uma excelente peça. O filme lançado em 30 de setembro de 2011, tem duração de 72min e aborda as técnicas de produção artesanal do queijo em Minas.

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Cartaz do filme: O Mineiro e o Queijo. Foto: Divulgação

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