Sons de Minas
- Redação do Matraca
- 14 de out. de 2020
- 8 min de leitura
A trajetória musical do estado, nos últimos três séculos, superou o limite do tempo. O movimento do Clube da Esquina, em especial, projetou a musicalidade mineira para além das montanhas
Texto: Ana Clara Libório, Júlia Mendonça e Laura Resende
Edição: Ariane Lemos

Minas é berço de gente talentosa e tem na música um de suas melhores aliadas. Melodias que percorrem ritmos e estilos, cenário musical do estado é marcante e admirado. Foi palco de uma das principais correntes musicais do país, o Clube da Esquina, que complementa e contribuí para as diversas formas que o mineiro tem de se expressar e se fazer ouvir.
Ao longo dos anos, a música produzida em Minas lançou nomes importantes para o país e suas rádios foram as grandes condutoras para esse impulsionamento. Na década de 1930, a Rede Mineira de Rádio e a Rádio Guarani marcaram época e levaram a boa música mineira da capital para o interior, revelando nesse processo grandes artistas. Aquarela do Brasil, composta por Ary Barroso, um dos muitos artistas que surgiram no estado, faz parte do leque de canções que marcaram e, ainda marcam, gerações. Ao lado do compositor, Rômulo Paes, Ataulfo Alves, Celso Garcia e Gervásio Horta são nomes de peso e estão entre os fortes representantes da trajetória musical mineira.
Primeiros sons
A musicalidade se faz presente em toda nossa história, desde cerimônias religiosas a eventos especiais, sempre acompanhadas e repletas de melodias e arranjos. No período do Brasil Colônia, as igrejas centralizavam as principais manifestações da arte e da cultura, incluindo as musicais. A introdução do órgão foi o primeiro instrumento musical aceito pelas igrejas cristãs, um marco na sonoridade do estado. Uma herança desse momento ainda pode ser vista e ouvida na Catedral da Sé, em Mariana, que abriga um verdadeiro tesouro musical: o exemplar de um órgão construído no norte da Alemanha, na cidade de Hamburgo, em 1701, assinado por Arp Schnitger (1648-1719). Depois de um rigoroso processo de restauração, o instrumento ainda é tocado em celebrações religiosas.

A relação entre religião e musicalidade também se faz presente em outra modalidade: na linguagem dos sinos. A histórica de São João del-Rei detém o título da terra onde os sinos falam. Cada toque transmite um tipo de mensagem facilmente reconhecido pelos moradores da cidade, podendo variar de festas religiosas a rituais católicos.
Rica e repleta de grandes colaboradores, a tradição da música mineira transitou por diferentes estilos e evidenciou notáveis talentos. O maestro Lobo de Mesquita (1746-1805), nas Minas Gerais, foi o maior expoente do estilo pré-clássico, gerando influência e inspiração em seus sucessores e concorrentes, num cenário disputado e vasto. O compositor João de Deus de Castro Lobo (1794-1832) foi um deles.
Além das montanhas
A relação de Minas com a música tem raízes históricas. No entanto, o movimento musical que projetou o estado e marcou seu espaço na música popular feita no Brasil só ocorreu na segunda metade do século XX. Curiosamente, esse movimento foi liderado por um mineiro de coração.
Milton Nascimento nasceu no Rio, mas foi em Minas que ele cresceu, se encontrou na música e ganhou o mundo. Integrante e um dos fundadores do conhecido Clube da Esquina, juntou-se a Lô Borges para dar os primeiros passos do mais emblemático movimento musical de Minas. O então grupo de músicos, letristas e compositores que surgiu na década de 1960, foi inovador e trabalhou com elementos provenientes da Bossa Nova, do Jazz e da música folclórica negra.

O Clube da Esquina é influência e inspiração que perpetua até os dias de hoje. Carrega consigo nome que se deu em referência a esquina da Rua Paraisópolis com a Rua Divinópolis, localizadas no bairro de Santa Tereza, na grande BH. Grupo que acolheu e reuniu componentes moráveis e talentosos como Fernando Brant, Wagner Tiso, Beto Guedes, Flávio Venturini, Vermelho, Tavinho Moura, Ronaldo Bastos, Nivaldo Ornellas, Nélson Ângelo e Tavito, manteve-se em atividade por cinco anos (1963-1978).

Toninho Horta, como um dos membros, definiu o Clube como divisor de águas na MPB. “Passados mais de 40 anos, continua sendo o único movimento que, ao lado da Bossa Nova, influenciou e continua influenciando a música do mundo inteiro”. A declaração não poderia estar mais certa. A trajetória do Clube fez história e vai continuar enquanto a música vive.
Revelação de talentos
Uma das revelações do Clube da Esquina foi Flávio Venturini, um grande músico e compositor do berço mineiro. Nascido em 1949, Flávio é natural de Belo Horizonte, mas atualmente mora na cidade de Brumadinho, na região metropolitana da capital mineira. Desde criança é apaixonado pela música e ainda muito novo já sabia o caminho que seguiria pelo resto da vida. “Meu primeiro contato com a música foi ainda menino, quando minha mãe tinha um hotel. Lá morava um maestro que estudava e tocava em seu quarto, ele tinha um piano. Eu adorava ficar na porta do lado de fora ouvindo as melodias, às vezes, até dormir. Depois, ganhei um rádio de pilhas e comecei a ouvir muitas músicas nas rádios locais. Fui me apaixonando aos poucos. Até que um dia ganhei meu primeiro instrumento, um acordeom”, relembra Flávio, com entusiasmo.
Flávio Venturini foi “descoberto” em 1970, através do Clube da Esquina, e participou do grupo musical “O Terço”, entre 1974 e 1976. “Eu já conhecia todos os integrantes do Clube, menos o Milton Nascimento, que conheci logo depois num festival em Belo Horizonte, em 1972. Lá estavam concorrendo Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Tavinho Moura e Tulio Mourão. Foi uma descoberta de grandes músicas e compositores. Com o tempo, me integrei a essa turma, tocando com todos e gravando em vários discos desse importante movimento,”, revela Flávio.
Flávio Venturini já apresentou em diversos festivais mineiros antes de se destacar no mundo da música, como o Festival Universitário de Belo Horizonte. “Nesse festival ficamos em segundo lugar com nossa música ‘Espaço Branco’, composta por mim e pelo Vermelho, um dos participantes do grupo ‘O Terço’. Mais tarde, deixou o grupo para criar a banda 14 Bis, grande marco do MPB mineiro, e seus integrantes também foram influenciados pelo Clube da Esquina. Adentrou a ela como tecladista, mas também participou como vocalista. A banda fez grande sucesso, principalmente nos anos 80, mas continua sendo apreciada pelos fãs antigos.
Em 1989, Flávio resolveu deixar o 14 Bis para seguir carreira solo. Continuou produzindo conteúdos autorais que fizeram e ainda fazem muito sucesso. “Participar dessa banda me trouxe muita alegria e diversas experiências inesquecíveis. Consegui crescer dentro da carreira que tanto amo e sempre serei grato”, ressalta Flávio, com emoção.
A música mineira é muito apreciada pelo artista, que sempre teve admiração por seu estado. “A música mineira é riquíssima em compositores, possui um universo variado de grandes conteúdos!”, destaca. Ao falar sobre suas experiências e inspirações na música, Flávio revela que se inspira muito na música romântica. “A música romântica me chama muita atenção, e é nela que a maioria das minhas composições são inspiradas. Também gosto bastante da melodia e letra dos Beatles, o Rock Progressivo e o MPB. Os envolvidos no Clube da Esquina também são uma grande inspiração pra mim, todos têm um talento incrível.”
Algumas de suas músicas o marcaram muito e fizeram grande sucesso nacionalmente. “As músicas que não podem faltar nos meus shows são “Espanhola” uma parceria com a dupla Sá e Guarabyra, “Todo Azul do Mar”, “Noites com Sol” e “Céu de Santo Amaro”. São músicas que marcaram minha trajetória.” finaliza. “Tenho 23 discos e 3 DVDs, incluindo minha carreira com O Terço, 14 Bis e carreira Solo. No momento estou terminando de gravar o CD Paisagens Sonoras, que logo será divulgado nas plataformas musicais”, anuncia.

Clube de inspirações
Flávio Veturini e o clube da esquina serviram de inspiração para muitos artistas mineiros, entre eles o cantor e compositor Aggeu Marques. Nascido em 1964 e natural de Caratinga, viveu sua infância e adolescência em Montes Claros e em 1988 se mudou pra capital mineira, Belo Horizonte. Por ter vivido os anos 60, Aggeu sempre teve contato com a música, mas teve seu despertar logo quando criança. “Eu comecei a prestar atenção por mim mesmo quando eu devia ter uns 12,13 anos de idade e foi exatamente com os Beatles. Eu fui assistir ao filme dos Beatles, o “Help” e me apaixonei loucamente pela história, pelas músicas deles”.
A paixão pela banda foi tanta que, por 15 anos, participou de bandas covers do Beatles. Entre elas a “Hocus Pocus”, na qual entrou em 1988, que foi a primeira banda a tocar exclusivamente Beatles em Minas Gerais e depois entrou na banda “Sgt. Pepper’s” que foi a primeira banda da América Latina a se apresentar em Liverpool onde Aggeu foi vocalista. “Com o Stg Pepper’s a gente gravou dois discos de músicas inéditas dos Beatles, lançamos lá em Liverpool e por causa disso a gente deu entrevista pela Inglaterra inteira, tivemos uma repercussão bem bacana”, relembra Aggeu.
Além de seus trabalhos com covers, o cantor também lançou três discos, um EP e dois DVD’s. Os discos podem ser encontrados em qualquer plataforma de streaming e os DVD’s estão disponíveis no YouTube em alta resolução. Apesar de ter escolhido pausar os shows autorais em sua vida há quase 10 anos, a música sempre mais pedida é Máquina do Tempo, um de seus grandes destaques de sua carreira e que também foi gravada por Flávio Venturini, uma de suas maiores inspirações no ramo musical.
Prestes a completar 20 anos de carreira autoral, Aggeu tem planos para comemorar a data tão especial. “O projeto é fazer o relançamento do primeiro disco em vinil”. Apesar da confissão de que foi um dos primeiros a abandonar o vinil logo nos anos 80, Aggeu aprecia a ideia momentânea que o disco de vinil tem pra vida do artista e de quem está escutando. “O vinil é a impressão daquele momento da vida do artista e para quem está ouvindo, não tem aquela fissura de ficar pulando de música, é o momento que a gente para pra ouvir e sentir a música”.

Flávio Venturini e o próprio Aggeu Marques são fonte de inspiração pra muita gente. Uma das pessoas influenciada por ambos, foi Gilberto Osório, fã e admirador das composições mineiras. “Apesar de ter nascido no Paraná, a música mineira sempre me chamou a atenção, principalmente pelo trabalho do pessoal do Clube da Esquina. A minha paixão pela música existe desde a adolescência, ouvia muito 14 BIS, e foi por ela que conheci o Flávio Venturini”, revela ele.

Quando Flávio seguiu carreira solo, Gilberto continuou acompanhando sua trajetória, seguindo sua paixão pela música romântica e MPB. Em um show de Venturini, no Palácio das Artes, Em Belo Horioznte, o fã teve seu primeiro contato com Ageu Marques, que também participava do evento. “O Ageu estava abrindo um show do Flávio em que eu estava. Achei sua música fantástica. Tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente, ele é uma pessoa incrivelmente talentosa”, conta Gilberto.

Carregando toda essa bagagem musical, Marques e Venturini são referência e modelo para amantes da música e artistas em ascensão. Foi a partir dessa inspiração que Gilberto começou a tocar instrumentos como guitarra e violão e se aproximou de Flávio, que hoje em dia é um grande amigo. “Tenho muita sorte de poder trocar ideias sobre músicas com meu maior ídolo da adolescência, sou muito grato por isso”, comemora
Graças a esses artistas que pessoas como Gilberto se interessam por esse universo e tudo que o contempla. A música tem o poder de transformar vidas e preencher momentos. É sinônimo de calma, serenidade e conforto, ao mesmo tempo que desperta entusiasmo, euforia e agitação. A música é refúgio. A música é arte. A música é referência e transformação, assim como nossa querida Minas Gerais, grandiosa em tudo que representa.
Comentários